quinta-feira, 28 de maio de 2009

"Vítima do destino"

Nesse período em que criança e/ou adolescente permanecem institucionalizados, o tempo não fica estático. Os mesmos desenvolvem-se, são muitas vezes obrigados a amadurecer precocemente e, vítimas das circunstâncias, tornam-se pessoas singulares. É, por isso, difícil descrever o protótipo de criança institucionalizada. Não é, de forma alguma, o que pretendemos fazer. O texto, que a seguir apresentamos, serve apenas para dar a conhecer uma dessas pessoas singulares, personalidades que se evidenciam num mundo tão igual.


Flávia

“Vítima do destino”


Como todas as crianças que se encontram no Centro de Acolhimento Temporário (CAT), a Flávia (nome fictício) está internada. Tem 15 anos e está no 8º ano de escolaridade. Apesar de ter tido um começo complicado, está a recuperar bem e, nos testes que já fez este ano, a regra foram os «Bom». E o que é que gosta de aprender na escola? «Gosto de Português», responde a Flávia, «tem a ver com a escrita, que eu gosto muito».
Esta pode ser uma criança excepcional, escreve poesia e já conta com mais de 50 poemas de amor da sua autoria. Porém, todas estas potencialidades poderiam ter sido desperdiçadas, se não tivesse havido uma intervenção externa no seu núcleo familiar. Era uma criança rebelde, negligenciada e a quem as regras pouco ou nada diziam.
Assim, foi aberto um processo em Tribunal onde se decidiu pela sua institucionalização, acabando por ser acolhida no CAT. Já passaram três anos desde que entrou no Centro. É uma jovem afectuosa e de lida fácil mas, como com todas estas crianças, é preciso alguma flexibilidade para lidar com elas. Ora prestam muita atenção a tudo o que se diz, são curiosas e querem saber mais, ora assumem uma atitude de completa indiferença sobre o que as rodeia.
Flávia preza muito a amizade. Porém, já se habituou ao constante “entra e sai” de pessoas na sua vida, pessoas que hoje são o seu centro, e a quem se apega, mas que de um momento para o outro desaparecem.
Quando o parecer da avaliação do seu caso é positivo, Flávia vai para casa. Mas não é para uma convencional, onde volta a encontrar a mãe e o pai, vai para a casa da tia, aquela que afirma com todo o fôlego representar mais que a própria mãe. Quando lhe perguntamos se quer ficar ali, Flávia não hesita: “ O CAT é bom para mim, mas eu vou voltar para a minha tia”.
Padece de alguns problemas, muitos dos quais derivados do seu “destino diferente”. “Às vezes é agressiva, mas nada como aprender a lidar. É algo natural nelas, é uma forma de se defenderem e que, com a idade, se evidencia cada vez mais”, afirma uma das funcionárias internas do CAT.
Todos os dias são um desafio, mas Flávia consegue fazer planos para o futuro, capacidade que muitas das crianças que estão na mesma situação não têm. E quando lhe perguntam o que quer ser quando for grande, responde: “Professora de Português, ou professora de artes marciais». E porquê?: “Para ensinar as pessoas a defenderem-se”.
(Imagem: Braziliantimes)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Um dia no CAT

A institucionalização de crianças e jovens deve ser encarada como último recurso, e apenas deve servir como “bengala” para evitar uma queda desastrosa. Apesar da institucionalização ser uma solução, hoje em dia, ainda sobressaltam mil dúvidas sobre as instituições, que se tornam os “lares alternativos”. Como será o dia destas crianças, que por circunstancias da vida, tiveram que abandonar os seus lares, para partir temporariamente para outro lar? Para esclarecer essa dúvida, fomos averiguar... E passamos o dia com os meninos do CAT!

“Uma casa chamada Lar”


No Centro de Acolhimento Temporário (CAT), o dia começa bem cedinho. Situado no Centro Cultural e Social de Santo Adrião, CAT é uma instituição, uma “segunda casa” para as crianças que se lá encontram. Como o próprio nome indica, esta casa é temporária, o que significa que nenhuma criança lá permanece mais do que um período de cerca de um ano e meio. Durante esse tempo, é realizado um acompanhamento tanto às crianças, como aos pais ou tutores legais.
No total são 12 as crianças que estão ao cuidado desta instituição, seis meninos e seis meninas. Todos eles são diferentes, têm idades diferentes, necessidades diferentes… Torna-se difícil conciliar tudo isto, mas com esforço tudo se consegue. Desde que entram para o CAT, às crianças é-lhes incutido o sentido de responsabilidade, não só nas tarefas que terão que desempenhar, como com os seus próprios afazeres escolares.
O dia começa, todos se levantam, à mesma hora, para o pequeno-almoço, em conjunto, na cozinha. Existem seis quartos, cada um deles com duas camas, que se dividem pelos rapazes e raparigas: ala esquerda para as meninas, ala direita para os meninos. Conforme se vão levantando, fazem a sua própria cama, preparam-se e seguem para a “reunião” na cozinha. Acaba-se o silêncio, as mochilas amontoam-se ao pé da porta de entrada, a zaragata começa. À mesa, as conversas paralelas são uma constante e poucos se importam, verdadeiramente, com o pequeno-almoço. A funcionária que o serve já “bufa” de tão atarefada que está. Leite com cereais ou um simples copo de leite acompanhado por um pão. A mesa é rectangular, grande, a toalha era branca, mas rapidamente se transformou, ganhou um novo padrão, de tanto leite com chocolate derramado! Nem 20 minutos passaram e chega o motorista para recolher as crianças que têm de ir para a escola: “Meninos, quem vem hoje?”, questionou o senhor com uma voz doce e um sorriso na cara. Parte da mesa levanta-se. Os meninos que andam na primária são os primeiros a ser entregues, são fixos, uma vez que todos os dias têm que ir à mesma hora. A estes juntam-se mais dois, que frequentam o segundo e terceiro ciclos. Um deles só tem aulas às nove, mas aproveita a boleia.
Os outros meninos vão para o Centro de Acolhimento de Tempos-livres (CATL), enquanto as funcionárias ficam com território livre para realizarem as limpezas diárias. Para o Centro vão, não só as crianças do CAT, mas também outras que se encontram em situação de risco. A maioria delas frequenta o Centro porque se encontram numa situação de vulnerabilidade e, pelo menos enquanto lá estão, recebem um tipo de apoio que em casa não encontram. Podemos mesmo dizer que muitas delas são potenciais casos para uma possível institucionalização.
A salinha do CATL é pequenina mas está bem apetrechada. Tem computadores, DVD, televisão, Playstation, bilhar, muitos livros e, claro, as tradicionais mesas e cadeirinhas. As paredes estão repletas de colagens, trabalhos feitos pelas crianças, planos de actividades e um cantinho reservado à fotografia do menino do mês, isto é, aquele que esteja de parabéns. No CATL fazem-se, essencialmente, trabalhos manuais. No dia em que lá estivemos, com a ajuda de uma estagiária, estavam a ser feitos os trabalhos para o Dia da Mãe, algo simples, mas cujo resultado surpreendeu. Resumia-se a um sabonete em forma de coração, decorado com purpurinas e envolto numa caixinha feita de papel esponja vermelho, também ele em forma de coração. A isto juntava-se um
pequeno cartãozinho com as tradicionais palavras “Feliz dia da Mãe” ou até algo mais para aqueles cuja imaginação voava. “Eu não vou fazer para a minha mãe, vou fazer para a minha tia, porque ela é mais importante para mim”, afirmou com convicção uma das crianças.
Paralelamente a estas actividades, decorria uma reunião, no cantinho da sala, entre os técnicos do CAT e os do CATL. Nessa manhã, estavam também presentes duas estagiárias de Psicologia para conversar com dois irmãos. Esta é uma rotina comum no Centro, uma vez que todas as crianças são acompanhadas regularmente por psicólogos que fazem frequentes avaliações, e nada melhor que o ambiente longe da família para o fazerem, evitando assim pressões por parte dos pais. Os irmãos não facilitaram, de todo, o trabalho das psicólogas. O mais novinho decidiu fazer uma birra e não largar a irmã, tudo porque queria que o seu trabalho fosse igual ao da irmã e insistiram para que não o fizesse. Foi preciso um bom tempinho e várias manobras para o convencer a largar a mana, para esta poder conversar com a psicóloga.
E num “pulinho” a manhã passou. A hora de almoço aproximava-se e teria de ser cumprida, uma vez que a maioria daquelas crianças tinha aulas à tarde. Por sua vez, as que tiveram aulas de manhã não tardavam a aparecer. O almoço não foi na cozinha do CAT, não tem capacidade para tanta gente, foi sim na cantina, onde se juntam não só as crianças mas também os idosos, que se encontram no centro de dia de Santo Adrião.
Findo o almoço, para alguns, o ritual do motorista repete-se. Desta vez, para ser mais rápido, saem duas carrinhas com crianças. Nota-se um sossego, a desarrumação é bem visível, parece que um furacão passou por ali. Porém o caos não dura por muito tempo, já que as funcionárias se apressam a arrumar tudo, para poderem receber os meninos que ainda estão para chegar.
De tarde, há sempre mais crianças. O dia estava lindo, o sol brilhava, a temperatura estava bastante agradável, não fazia sentido fechar as crianças entre quatro paredes. Por isso, decidiram fazer uma actividade desportiva, uma tarde radical que somava desportos como rappel e escalada. Aproveitámos a calma para “explorar” e tentar perceber as lógicas de funcionamento do CAT. “Aqui somos todos uma família. Tentamos sempre passar essa ideia às crianças”, disse-nos Teresa Antunes, a coordenadora do CAT. Deram-nos total liberdade para ver o espaço, fazer perguntas, falar com o pessoal interno, o que ajudou em muito para a compreensão geral do funcionamento do Centro. As instalações têm muita cor, brinquedos espalhados, salinhas de convívio, trabalhos espalhados pelas paredes… Os direitos e deveres de todas as crianças estão bem patentes, sobretudo se dermos uma olhadela pelos dormitórios, onde encontramos de imediato uma grande cartolina a especificá-los. Os quartos distinguem-se bem: nos das meninas predomina o rosa, no dos meninos o azul. As camas são de solteiro, separadas por um pequeno móvel com um candeeiro e, mais uma vez trabalhos com o “dedinho dos hóspedes”.
O relógio marcava seis horas da tarde, quando as crianças regressaram. A chegada foi bastante notada, a zaragata característica voltava. Era hora do banho e de fazer os trabalhos de casa. O jantar é servido bem cedo, para se seguir um momento de convívio e conversa e para, mesmo assim, se deitarem cedo.
Estava na hora de partir. Despedimo-nos, agradecemos e garantimos que voltaríamos. A caminhada até casa foi longa, a conversa estava alucinante, nenhum pormenor escapou, discutimos opiniões, detalhes, mas numa coisa concordámos: apesar da rotina, haveria sempre algo de novo para contar, todos os dias…



Opinião

O nosso trabalho não estaria completo sem a opinião de um profissional que tão bem conhece a problemática do nosso trabalho. António José Castro tem 26 anos, é licenciado em Psicologia, pela Universidade do Minho. Estagiou e trabalhou na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Braga, tendo contactado durante dois anos com casos de crianças, que por estarem inseridas num quadro de família disfuncional, se tornam no principal alvo do olhar destes profissionais.
Crianças em risco


Ao longo dos anos em que fui trabalhando com crianças, sob diversas formas, a experiência acumulada foi-me dando a perceber a dinâmica subjacente ao risco de um desenvolvimento conturbado e desequilibrado, que muitas vezes se reflecte, ao longo do tempo, num conjunto de escolhas sucessivas, que conduzem a um percurso que se afasta a passos largos do ideal.
Ao longo do tempo observei que o risco se podia revestir de duas formas, às quais chamei “8 ou 80”, formas e contextos
que potencializam nos menores um desenvolvimento pouco concertado, conduzindo na maioria das vezes a uma idade adulta conturbada, irreflectida e, acima de tudo, precoce.
Começarei por abordar o “8”, o mais típico risco, ou seja menores de famílias desagregadas onde o baixo nível económico e a baixa supervisão imperam, onde as únicas práticas educativas utilizadas são caracterizadas por repreensão física e onde a violência é muitas vezes a única forma de comunicação entre os seus elementos.
Estes miúdos normalmente procuram na cultura de rua e principalmente em pares também eles desviantes, os modelos vinculados, formando desde cedo os denominados “gangs”, responsáveis pelos primeiros actos delinquentes. Neste grupo encontramos filhos de famílias monoparentais, miúdos institucionalizados, aos quais muitos autores denominam de “rejeitados da sociedade”.
Contudo, nos últimos tempos, temos assistido a proliferação do contrário, ou seja do “80”, crianças de famílias economicamente bem colocadas, cuja educação em regime liberal oferece, desde cedo aos menores, não só uma responsabilidade crescente, mas acima de tudo um poder de decisão nas opções familiares. Este método educativo surge, normalmente, associado como balanço relativamente a um estilo parental ausente, onde os menores são entregues na maioria do tempo aos seus passatempos, e onde a consola muitas vezes acaba por passar mais tempo com os miúdos do que propriamente os seus progenitores. Isto faz com que os jovens assumam uma posição de comando nos diversos sectores da sua vida, e que tenham dificuldade em assimilar as regras sociais subliminares, conduzindo-os a comportamentos anti-sociais.
Dai que seja importante estar atento, trabalhar a importância do contexto familiar, como potenciador de regras que os preparem para um vida em sociedade, tentar que a passagem ou peso de uma família desestruturada seja equilibrada por estruturas sociais competentes, capaz de contornar todas as adversidades criadas pela falta ou mesmo inexistência de suportes sociais, e que estas instituições seja mais que contentores de menores que os impedem de dormitar na rua, e que se transformem em verdadeiros centros educacionais. Apesar disso, esta não deixa de ser a verdadeira razão da existência destes locais.

António José Castro,
Psicólogo